Textos

22/04/2021
10:44
Bologna, Italia
22/04/2021
10:44
Bologna, Italia

Não há refogado na Itália

Poucos aromas despertam mais o apetite que cheirinho de refogado. É só ele bater e você já imagina o alho fritando, a cebola ficando transparente… tenta então adivinhar: arroz, tempero de feijão, verduras, carnes… o que não começa com um bom refogado?

E duvido que exista técnica mais mão-na-roda, que a um só tempo exalte o sabor de qualquer alimento, seja facílima e mantenha muitos nutrientes intactos. Pense em um legume. Faça um refogado e jogue ele lá dentro. Garanto que dá certo.

A cozinha do dia-a-dia baseia-se na improvisação, no que sobra na geladeira. Sabe aquele bem bolado – ou mexidão – que brasileiro tanto gosta? Garanto uma coisa: qualquer bem bolado já começa bom com um refogado.

Qual não foi minha surpresa, porém, quando descobri que aqui na Itália o refogadinho não é assim tão corriqueiro. Verduras normalmente são aferventadas com um pouco de sal e servidas com um fio de azeite, e o início de raras receitas prevê a combinação de gordura, cebola e alho.

Os motivos são vários: primeiro, existe um terror difuso em relação ao último. Ou melhor, ele marca presença em inúmeros pratos, mas dificilmente fica na panela até o final do cozimento: esquente o azeite, coloque um dente (um, hein) de alho inteiro, espere ele pipocar um pouquinho e, pronto, tire-o imediatamente.

Talvez seja porque o alho na Itália normalmente é mais seco, menos fresco – e portanto com um sabor mais acentuado – que os alhos brasileiros (roxinhos, gorduchos). Ainda assim, não consigo entender as tantas pessoas que juram de pés juntos sentir seu odor mesmo que tenha sido usado na panela do lado.

O grande maestro da cozinha italiana, Pellegrino Artusi, autor do livro até hoje considerado a bíblia da cozinha italiana, parecia não ser desse time e relata essa estranha relação:

“Os antigos Romanos deixavam o alho às pessoas inferiores, e Alfonso, rei de Castiglia, odiava-lo tanto que punia quem aparecesse na Corte com cheiro de alho na boca. Mais sábios eram os antigos Egípcios que o adoravam, veneravam-no como uma divindade, talvez porque fossem cientes de suas virtudes medicinais e, de fato, sabe-se que o alho faça bem aos histéricos, que aumente as depuração de secreções na urina, fortaleça o estômago, ajude a digestão e, sendo também um vermífugo, previna doenças epidêmicas e pestes. Mas, nos refogados, prestem atenção para que não cozinhe demais, porque aí sim se torna muito ruim. Existem muitas pessoas que, ignorantes na preparação de comidas, tenham horror ao alho pela única razão que sentem o cheiro forte no hálito de quem o come cru ou mal preparado; por isso, como um tempero da plebe, banem-no completamente de suas cozinhas: mas essa ideia sem fundamento os priva de alimentos higiênicos e gostosos” (Artusi n.104 – tradução livre)

A relação com a cebola é também um pouco diferente. É protagonista de muitas receitas: sopas, conservas, molhos de macarrão… Em Bolonha, cidade imersa em uma região produtora desse bulbo, um dos acompanhamentos clássicos é o friggione (quilos de cebolas cozidas em molho de tomates por muitas horas, de preferência na banha). Mas, estranhamente, pouquíssimos pratos começam com um refogado feito delas. Risotos, talvez, mas muitos preferem-na omitir mesmo ali. E, quando necessário, basta uma colherada de cebola picadinha, não mais que isso. Lembro-me saudosa das onipresentes montanhas de cebolas cortadas no balcão da cozinha da minha casa, que precediam qualquer preparação.

A implicância do italiano com a cebola não vem de seu cheiro, mas da dificuldade na digestão (?). Na escala de digeribilidade, cebolas estão mais ou menos no mesmo patamar de cozido de joelho de porco. Vai entender.

Mas, birras à parte, um certo refogado existe, na Itália: o “soffritto”. Não é alho e cebola, mas aipo, cenoura e cebola (os ingredientes básicos do caldo de verduras). Essa é a mistura oficial, que inicia qualquer ragu, ensopado.

O doce da cenoura e da cebola que contrabalanceiam a estranha personalidade do salsão, conferem a qualquer prato o que os chefes modernos descreveriam como “uma camada a mais de sabor”. E também complexidade – no gosto e no preparo. Talvez até demais.

Pensando bem, então, os italianos não são avessos ao refogado. Só não descobriram, ainda, a magia da combinação “alho e cebola”. E, talvez, só ela, de tão simples e perfeita, possa dar origem a um verbo: refogar. Dos mais úteis na cozinha.

Em italiano, existe “soffrigere”, fritar muito lentamente, mas o uso é diverso, dá significado a um passo anterior: você “soffrige” a cebola no azeite, mas não o ingrediente que vai depois para a panela. E a falta de um verbo para isso complica tanto as coisas… Trocando receitas por aí, me perguntam:

– Mas como você faz esse legume?

– Eu passo-o na frigideira, ainda cru, com cebola e alho cozidos previamente em azeite.

Tão mais fácil seria dizer: “é só refogar”.